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O POETA DOS MARES

<Depois pintou o horror da tempestade
E o assobio dos ventos nas procellas,
Dos naufragios a lugubre verdade,
Um navio sem mastros e sem velas. >>
(Gomes Leal - A Fome de Camões-
1880, Lisboa).

Sendo a linguagem a fórma mais eloquente da manifestação do pensamento, a poesia que o exterioriza e traduz em rhythmos differentes e sob côres e matizes tão variados, é a mais bella revelação das ideias, das emoções e das cousas visiveis. A poesia exprime com perfeição a dor e o prazer, os estados mais oppostos da alma, seus arrebatamentos e suas quedas; os phenomenos e as scenas da natureza, porêm, as suas creações, alternativas e effeitos só os expressará na melodia do verso, com clareza e propriedade, o poeta que nortear o curso da inspiração pelo sentimento da arte, sendo, por isso mesmo, um pintor, um paisagista. Sob este ponto de vista Luiz de Camões é grandioso; nada o impressionava tanto como o mar. Aspectos naturaes e phases suc cessivas do tempo, — o raiar luminoso do dia, o cair sombrio das noites tempestuosas, a aurora toucada

das rôxas flôres do crepusculo oscillante e macio; o tapiz que cobre e enfeita os campos e a pellucia que reveste o cimo dos montes e a fralda dos oiteiros, o fio crystallino de lympha transparente a serpear por entre boninas, na veiga e nos prados, -nada lhe ficava tão bem esboçado, ao esbater do pincel maravilhoso, como as marinhas:

o mar en

calma, a vaga revolta ou bonançosa a espraiar-se sobre os prateados e movediços areaes das largas enseadas, ou o sól vermelho, muito rubro, já sem raios e calor, atufando-se ao longe, no leito escuro e revolto do oceano infinito.

Soldado e navegador, Camões adquiriu, nas longas travessias que lhe impunha o destino aventuroso pelas ondas, essa larga convivencia com o oceano, que tanto lhe apurou os sentidos e lhe deu tão preciso conceito das cousas maritimas. No tempo em que o vento era o unico meio propulsor das caravelas e das naus, a navegação, em demanda de plagas distantes, era empresa arriscada, de duração que se não podia prever e de resultado sempre duvidoso e incerto; andava a maruja á mercê de ventos propicios e frescos ou de calmarias demoradas e incommodas. Era, assim, a vida perigosa do mar escola de coragem, constancia e resignação. Camões, que tinha no seio o fogo do genio, consorciou-se nessas demoradas viagens com a alma do oceano, perscrutando-lhe os segredos mais intimos e recon

ditos.

O assumpto dos Lusiadas é exclusivamente maritimo, pelo fim, pela acção e pelo heróe, que a realizou e, por isso, o poema de Luiz de Camões é, como diz Joaquim Nabuco, com muita felicidade, livro para ser lido calmamente em viagem, no tombadilho á sombra do velame. (1) Então, o leitor

(1)-Obra citada. Pag. 21.

compara as scenas que lhe exhibem o céu e o mar, o ennoitar e o amanhecer, as ondas e as nuvens, no arfar do vento e ao balanço da embarcação, com as que a leitura lhe evoca, e sente-se extasiado ante as bellezas que lhe offerece a poesia espontanea de Camões, cantando-lhe aos ouvidos, e as que a realidade lhe apresenta aos olhos curiosos e admirados, A faina de bordo a levantar ferro e a sahir dos portos, dando velas ao vento; o partir e o afastar da terra, que pouco a pouco se vai perdendo ao longe, quando mais se não vê que mar e céu, são passagens da vida maritima, descriptas por Luiz de Camões com tanta expressão, clareza e evidencia, como ainda não foram por nenhum outro poeta.

Sai de Lisbôa a armada de Vasco da Gama para o grande e assombroso emprehendimento, após solennes cerimonias religiosas, realizadas pelo bom exito da empresa. Levanta-se ferro e soltam-se velas; nas praias abrolha o pranto e correm lagrimas; de bordo e de terra erguem se os braços, acenando as mãos em despedida, até que, entre a duvida, a sauvade e a esperança, de todo se perde aos nautas a vista da patria extremecida. Camões descreve assim este episodio:

«Estas sentenças taes o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As azas ao sereno e socegado
Vento, e do porto amado nos partimos;
E, como é já, no mar, costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo: Bôa viagem!» Logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento. (2)

Já a vista pouco e pouco se desterra
D'aquelles patrios montes que ficavam
Ficava o caro Tejo e a fresca serra

(2) Canto V. Estrophe 1.a

De Cintra, e nella os olhos se alongavam.
Ficava-nos tambem na amada terra

O coração, que as maguas lá deixavam.
E já depois que toda se escondeu,

Não vimos mais emfim que mar e céu.» (3)

O viajor que, silente e curioso, se conserva na amurada da embarcação, desde o momento da partida até que inteiramente se lhe apaga dos olhos a sombra da terra, em seus ultimos contornos esvaidos no horizonte, percebe e admira, lendo a descripção camoneana, a belleza desta ultima estrophe e a synthese magnifica deste verso:- «Não vimos mais emfim que mar e céu.» Mesmo no espirito de quem tenha perdido, por completo, a profunda impressão dessa hora melancolica e triste do inicio das viagens maritimas, a leitura deste trecho desperta saudades e aviva lembranças.

Porto Alegre, que tambem foi eximio pintor de scenas da natureza e de paisagens marinhas e florestaes, não logrou dar ás côres do seu pincel o fulgor, a vivacidade e a nitidez dos traços de Camões. Sobre o mesmo assumpto das oitavas antecedentes o poeta brasileiro traçou, no Colombo, que é egualmente um drama no oceano, o quadro que abaixo trasladamos. Não tem a narrativa menos eloquencia, embora não ostente tanta perfeição a fórma poetica que a emoldura. Quando de Palos se afastam as tres caravelas do almirante genovês, em busca do novo mundo, agitam-se nas praias, em lamentoso pranto, paes e noivas, amigos e parentes:

«Postados na amurada, as faces tintas

De oppressão e de angustia á terra enviam
Pelos humidos olhos, nella fitos,

Saudoso adeus, os nautas consternados.
Quem sabe, dizem todos suspirando,

(3) Canto V. Estrophe 3.a

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