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Os Lusiadas

«Assim como o poeta do oriente europeu, Homero, escreve a epopeia da navegação mediterranea, Camões, o poeta do occidente europeu, escreve a epopeia da navegação oceanica. A Odysseia e os Lusiadas aguardam o terceiro poema que ha de completar tão maravilhoso cyclo.» (E. Castellar. A Ilha de Capri. Recordações da Italia.)

Perpetúa o marmore na belleza esculptural das linhas, no bem disposto e talhado dos blocos, no apurado estylo das columnas, no rendilhado dos capiteis, na grandeza assombrosa dos templos, dos palacios, dos obeliscos e dos monumentos, as tradições, os feitos, a gloria e o esplendor da civilização dos povos através do perpassar das eras; conserva o bronze na sua fria e muda rigidez, vasado nos mais primorosos modelos, as fórmas que mão engenhosa The soube imprimir, imitando caprichosos desenhos e as feições mais delicadas da physionomia humana: estatua de deusa, busto de heróe, palmas de triumpho, inscripções sagradas ou profanas que resumem, na eloquencia de seus dizeres, as lendas e as chronicas de muitos seculos.

O tempo, porêm, no seu correr precipite, volvendo por sobre a torre dos templos, a cupula dos palacios e o cimo dos obeliscos e dos monumentos, os corróe e abate; consome o bronze das estatuas, apaga os caracteres das legendas, deformiza e subterra a effigie dos heróes, as palmas e as corôas que pareciam duradouras e eternas, e, quando muito, daquelles, despedaçado o marmore, restam as ruinas como testemunho de preterita magnificencia, e destas, corroido o bronze e apagados os relevos, subsistem, apenas, membros mutilados, destroços e fragmentos nas bibliothecas e nos museus, para revelarem aos archeologos o gosto e o primor do artista que lhes emprestou, pelo sopro do genio, a belleza que ainda se lhes admira e a perfeição, que ainda se lhes advinha entre os traços que alli se divizam e a concepção que o espirito, remontando-se ás edades que já se foram, idealiza e imagina.

A historia, ao contrario, alargando a sua influencia sobre o futuro, extende o seu dominio soberano e as suas vistas perscrutadoras á mais longinqua antiguidade, nessa sublime e gloriosa missão de gravar na memoria dos homens, em côres indeleveis e impressões inolvidaveis, a origem e o des envolvimento, a gloria e a decadencia dos povos. A acção da historia é mais duradoura do que o marmore e mais resistente do que o bronze. Dictada pela consciencia universal, cujo reflexo luminoso se projecta sobre as sombras das eras mais remotas; guiada, como deve ser, pela critica isenta do influxo das paixões, do prejuizo das seitas e da cegueira dos partidos; amparada pela logica no encadear os factos e inferir das acções o caracter dos personagens e de certas occorrencias o aspecto accentuado de cada épocha, a historia liga o presente ao passado, ergue barreira á obra destruidora do tempo, e

apresenta em vivo destaque, como num quadro de desmesurada moldura, os dramas e episodios de mais vulto, que se desenrolam no vasto scenario do mundo.

A epopeia, entretanto, tem maior poder e maior prestigio para perpetuar os acontecimentos e as cousas, o crescer e declinar dos povos, as suas virtudes e os seus vicios, suas grandezas e suas quedas, porque, revestindo acções e protogonistas das variadas côres e dos multiplos attractivos que a poesia sabe inspirar, fal-os chegar, rasgando a nevoa das edades, ao conhecimento dos pósteros, pela magia dessa linguagem encantadora e harmoniosa, que embala o espirito e fascina a alma, obrigando a memoria a guardar para sempre, doce e machinalmente, entre gratas recordações e suaves reminiscencias, os seus traços mais salientes e os seus feitos mais impressionantes e nobres.

A poesia é mais verdadeira do que a historiano dizer de Aristoteles-e, por isso mesmo, mais duradoura e mais resistente á acção implacavel dos annos, porque, «si a lingua propria de um povo é o tronco em que se manifestam e se expandem todos os seus dotes interiores, é só na poesia que desabrocha a florescencia do seu crescer e do seu prosperar.» (1) Foi através da poesia que se transmittiram á humanidade, antes do dominio da historia, os mysterios de suas religiões, as lendas de seus deuses, as formulas dos seus cultos e a origem dos seus remotos antepassados com todo aquelle numeroso cortejo de maravilhosas aventuras, infortunios e desditas. Os Vedas, o Mahábharata e o Rámayâna são poemas em que as antiquissimas tradições religiosas dos hindús, com as suas surprehendentes en(1)-Tobias Barreto. «Estudos Allemães». Pag. 257, Rio de Janeiro

carnações, seus mysterios e seus apostolos, tão miraculosos e phantasticos, se eternaram e se vão diffundindo de geração a geração, com esse frescor, vivacidade e interesse com que, ainda agora, se nos retratam no pensamento, enlevado pela musa da Poesia, os deuses e semi-deuses da Iliada, as commoventes navegações da Odysseia e os indefessos heróes da Eneida. Os livros da Biblia, donde deflue, em torrente, muita eloquencia e muita verdade, estão entremeados da mais tocante e arrebatadora poesia, que encanta a alma e edifica o espirito, pela abundancia de conceitos elevados, exemplos sublimes de abnegação e virtude e pelo animado colorido de imaginação e de arte; o Cantico dos Canticos, de Salomão, os Psalmos, de David e as sentenças e os pensamentos de Job, suave conforto ás almas que soffrem e aos que se debatem nas duvidas, nos enganos e nas fugaces illusões do mundo.

A poesia em todas as épochas teve o condão maravilhoso de fascinar os espiritos, e por isso a alma da immortalidade, que isenta do olvido os homens e as acções, residindo serena e tranquilla na historia, libra-se, entre o céu e a terra, nas azas da epopeia, bafejando a face dos heróes e gravando o sello da imperecibilidade sobre a fronte augusta dos que têem alma para crear no vasto campo da sciencia, da philosophia e da arte; braços para feitos valorosos e coração animoso para vencer nas luctas das paixões, dos vicios e das miserias terrenas. A epopeia é obra do genio e o genio, quer em suas arrojadas concepções além da realidade da vida objectiva, imaginando e creando, quer no traço e remate consciencioso dos quadros que esboça, das scenas que debucha, dos personagens que movimenta, dos caracteres que exhibe, das façanhas que relembra, tem o privilegio de emprestar ás

côres variadas de sua palheta e aos matizes delicados de seu maravilhoso pincel, tons indeleveis contra o sopro anniquilador das edades, relevos e ornatos tão singulares e bellos que jamais se apagam da memoria humana.

A Grecia antiga dos tempos heroicos, quando as deusas, descendo do Olympo, acompanhadas de nymphas formosissimas, oreades, naides, dryades e nereidas, vinham repousar, banhadas de luz resplandecente, á sombra de arvores de ouro, sob aquelle céu incomparavel, no recanto das collinas, nas ilhas luxuriantes de verdura e nas praias tranquillas do mar Egeu, recamadas de conchas prateadas e roseas; e os deuses e semi-deuses, por capricho e passatempo, edificavam e destruiam cidades, obravam prodigios na terra, e se deixavam captivar por todas as paixões que animam e agitam o peito dos mortaes, ainda revive nos paineis de Homero, na Iliada e na Odysseia; do Lacio e de Roma, de Latino e de Romulo, de Augusto e de Pompeu, de Catão e de Cesar, do Forum e da Curia romana, falam, com mais eloquencia e com maior fascinação, os livros da Eneida e os cantos da Pharsalia do que as tradições, as lendas, as estatuas e as ruinas que, mesmo agora, attestam a passagem de tão estraordinaria grandeza, porque:

«Versos dão vida

Ao digno de memoria e o accrescentam.
As Musas cantam, delles é sabida,

Não de metaes, de cedros, de esculpturas,
A fama aos claros feitos concedida.

Caem as estatuas, gastam-se as pinturas;
Aquelle brando canto é só mais forte
Contra o tempo, que ferro ou pedras duras:
Contra fogo, contra agua e contra a morte
Fica soando sempre.» (2)

(2)- ANTONIO FERREIRA, Livro I. Carta VIII. Obras Completas,

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