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O MARAVILHOSO DOS LUSIADAS

A mythologia dos Lusiadas parece uma evolução da antiga, como si o paganismo durasse mais dez seculos, lado a lado do christianismo. E' viva e, como poetica, conserva toda a sua força plastica. (Joaquim Nabuco. O Logar de Camões na Litteratura». Discursos e Conferencias nos Estados Unidos. 1911).

Elegendo para assumpto do poema a viagem de Vasco da Gama á India, dobrado o cabo da Bôa Esperança e ladeada a costa oriental da Africa, materia já consagrada nas Lendas de Gaspar Correia e nas Décadas de João de Barros, Luiz de Camões teria escripto uma narrativa metrificada, si não procurasse adornar os Lusiadas de episodios romanescos, emocionantes quadros historicos e passagens mythologicas, enfeitando o veridico com o maravilhoso e dando ao imaginario os atavios classicos, tão em moda no seu tempo. Seguia, assim, no maravilhoso e no mythologico, os moldes litterarios de Homero e Vergilio, ao envês de enveredar pelo caminho que lhe poderia offerecer Lucano, na Phar

salia, que, apesar de suas bellezas, sem ficção e phantasia, é antes uma chronica politica do que um poema.

A obra de Lucano, em sua épocha, foi considerada uma como revolução; o poeta rompeu com a tradição reinante na feitura das epopeias; afastouse do caminho de Vergilio e dos demais epicos em voga, abandonando os deuses da fabula, até então indispensaveis á urdidura de composições dessa natureza, para fazer, ao contrario, da historia a substancia e a base unica do seu poema. Embora conquistando applausos de grande circulo de seus contemporaneos, Lucano, que era individualista, cioso do seu talento e convencido da durabilidade da sua obra, não fez escola; não teve proselytos. A reacção contra a sua influencia não se fez esperar. Os Argonautas, de Valerio Flacco, a Segunda Guerra Punica, de Silio Italico e a Thebaida, de Stacio, que seguiram á Pharsalia, são poemas em que impera a fórma classica e a mythologia é a machina maravilhosa das scenas e dos desfechos.

Dante, seculos depois, concebendo a Divina Comedia, evocava, com a agudeza de seu espirito creador, do mysticismo, do tenebroso e do sublime que encerravam e envolviam o assumpto escolhido, as bellezas que espargiu, ás mãos cheias, nos numerosos cantos do assombroso poema; Tasso encontrava nas Cruzadas, no sentimento profundamente piedoso da edade media com relação ao sepulcro de Christo, os encantos e os mysterios que sempre circundam as cousas que falam de Deus e lembram o céu ; Camões, no entanto, não descobria, no assumpto preferido para thema dos seus versos - um simples roteiro de viagem, de facto grandemente accidentada e perigosa, mas na verdade sem larga fonte de inspiração —, os apavorantes tormenots e

as esperanças consoladoras que proporcionavam a Dante as scenas inescrutaveis do Inferno, do Purgatorio e do Paraiso, e a Tasso os lances admiraveis e tocantes da guerra santa.

Sentindo, pois, necessidade de dar ao poema os attractivos que, só por si, o assumpto não offerecia a espirito menos exigente, Camões recorreu á mythologia; confere a Baccho o papel de inimigo indefesso de Portugal, representado por Vasco da Gama, cujas glorias no Oriente viriam offuscar as suas, e á Venus, carinhosa e bôa, a missão de protectora da gente lusitana, pelo muito que ella se parecia, na bravura e na linguagem, com o povo romano, que tão querido lhe fôra. A Baccho impelle o despeito e a inveja; a Venus a bondade e o amor dos grandes feitos. Assim, quando, no conselho divino do Olympo luminoso, Jupiter propõe sejam os navegantes, fatigados das longas travessias e dos duros trabalhos do mar, recebidos e agasalhados como amigos em um dos portos africanos, oppõese Baccho porque:

«Vê que já teve o Indo sojugado,

E nunca lhe tirou fortuna ou caso
Por vencedor da India ser cantado
De quantos bebem a agua do Parnaso;
Teme agora que seje sepultado

Seu tão celebre nome, em negro vaso
Da agua do esquecimento, se lá chegam

Os fortes portuguêses que navegam.» (1)

Baccho não esconde o odio, filho do receio de ser apoucado pelos lusitanos o seu renome na India; não occulta Venus a sua affeição á gente por. tuguêsa, e assim:

(1)-Canto I. Estrophe 32a,

<Sustentava contra elle Venus bella,
Affeiçoada á gente lusitana

Por quantas qualidades via nella
Da antiga tão amada sua romana,
Nos fortes corações, na grande estrella,
Que mostraram na terra tingitana,

E na lingua, na qual, quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é latina.» (2)

«Assi que um pela infamia que arreceia
E a outra pelas honras que pretende,
Debatem, e na porfia permanecem.

A qualquer seus amigos favorecem.» (3)

Tudo o mais de maravilhoso decorre d'ahi. Baccho não se resigna a ver os seus dominios devassados pelos lusos na India, onde tinha altares e se lhe rendia culto; não se descuida Venus de protegel-os contra as traições e os enganos que em toda a parte lhes apparelha a astucia e a intriga de Baccho. E assim, emquanto o gran Thebano tece as insidias desmascaradas em Moçambique e prepara em Mombaça a destruição completa da frota portuguêsa, a deusa dos amores, sempre vigilante :

Vendo a cilada grande e tão secreta,
Vôa do céu ao mar como uma setta.»

«Convoca as alvas filhas de Neréo
Com toda a mais cerulea companhia;
Que, porque no salgado mar nasceu,
Das aguas o poder lhe obedecia.
E propondo-lhe a causa a que desceu,
Com todas juntamente se partia,

-Canto I. Estrophe 33a. (3)-Canto I. Estrophe 34a,

Pera estorvar que a armada não chegasse (4)
Aonde pera sempre se acabasse.

«Já na agua erguendo vão, com grande pressa,
Com as argenteas caudas branca espuma;
Cloto c'o peito corta e atravessa

Com mais furor o mar do que costuma;
Salta Nice, Nerine se arremessa

Por cima da agua crespa, em força summa,
Abrem caminho as ondas encurvadas,

De temor das Nereidas apressadas.

«Nos hombros de um Tritão, com gesto acceso,
Vai a linda Dione furiosa;

Não sente quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão fermosa;
Já chegam perto d'onde o vento teso,
Enche as velas da frota bellicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse instante.
As naus ligeiras que iam por deante.

«Põe-se a deusa com outras em direito
Da prôa capitaina e alli fechando

O caminho da barra, estão de geito,

Que em vão assopra o vento, a vela inchando;
Põem no madeiro duro o brando peito,

Pera detrás a forte nau forçando:

Outras em derredor levando-a estavam,
E da terra inimiga a desviavam.

«Quaes pera a cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande accomodado,
As forças exercitam de inimigas
Do inimigo inverno congelado;
Alli são seus trabalhos e fadigas,
Alli mostram vigor nunca esperado;

Taes andavam as nymphas estorvando

A' gente portuguêsa o fim nefando.» (4)

(4) Canto II. Do estrophe 18 a 231.-«Estorvar que armada «não chegasse». Esta fórma de expressão com a negativa e os verbos impedir, estorvar, etc... não é mais usada.

Dione é um dos epithetos de Venus.

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