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01810

C79

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Quando me inclinei á leitura attenciosa dos Lusiadas, procurando perscrutar-lhes os segredos da linguagem e meditando sobre a belleza de fórma, arrojo de imaginação, profundeza de conceitos e variados recursos da metrica, que elles nos revelam, não obedecia a méro capricho litterario; impellia-me, ao contrario, a necessidade de habilitar-me na mais perfeita comprehensão do texto da grande epopeia, sob o ponto de vista grammatical, mythologico, historico e geographico, afim de esclarecer duvidas que, não raro, me salteavam o espirito na explicação e analyse do poema, tarefa que me impunha a regencia de uma cadeira de lingua portuguêsa no Gymnasio Pernambucano do Recife.

Afastado daquelle ministerio e até compellido a emigrar do Estado natal pela violencia de paixões politicas mal contidas, numa phase que a historia imparcial e justa ha de estigmatizar com vehemencia, não abandonei jamais a leitura do poema predilecto, transformando em aprazivel passatempo o que outrora iniciara como encargo, e tanto mais me engolfava na apreciação dos seus multiplos episodios e desenlace de suas variadas scenas, quanto mais me sentia empolgado pelo movimento daquelles quadros, altruismo daquelles bravos e opulencia daquella linguagem. Aconteceu-me, então, o que succede sempre aos que se abalançam a tentar arduos emprehendimentos; removidos os primeiros embaraços, as difficuldades a vencer lhes provocam o estimulo, reani mando-lhes as energias de tal modo que jamais retro cedem, até levar a cabo o commettimento projectado.

Os que não se deliciam com a leitura dos Lusiadas e não se enlevam recitando algumas de suas mais formosas passagens, estrophes que nos fazem vibrar de enthusiasmo ou enternecer de commoção e piedade, pelo colorido das imagens e perfeita identificação das palavras com o pensamento que ellas traduzem, não sabem lêr o poema, ou não o lêem com alma, sentindo como o poeta sentiu, porque a poesia como a musica e as demais artes que se dirigem directamente ao espirito, como revelação de sentimentos delicados, devem ser comprehendidas para que possam despertar em nosso cnimo o goso, a satisfacção e o applauso. E' essa identificação do leitor ou do ouvinte com o pensamento do poeta e a musica dos versos, esse consorcio intimo, espiritual e consciente da alma com o assumpto, que se faz mister para que se percebam as bellezas da poesia, os seus segredos e encantos que a linguagem só por si, embora com o

auxilio poderoso do metro, não traduz nem revela. E' a verdade deste conceito que Adolpho Taine, numa esphera mais larga, expressou deste modo: «Para comprehender uma obra de arte, um artista, um grupo de artistus, é preciso conhecer com exactidão o estado geral do espirito e dos costumes do tempo a que pertenciam.»

Das minhas observações pacientemente colhidas não me aproveitarei de todo; abandonarei mesmo, neste trabalho, o que no estudo dos Lusiadas importa á didactica, interpretação grammatical e logica, questões de mythologia, historia e geographia, para analysar, como devaneiando, os principaes episodios e passagens mais emocionantes e attrahentes, comparando-os com os de outros poemas, de modo a pôr em destaque o caracter dos personagens, a majestade das scenas, a importancia dos conceitos, os donaires da fórma, os recursos da arte, realçados sempre pela poesia mais vibrante, terna, energica ou ruidosa conforme a natureza do assumpto, a situação das pessôas, as exigencias dos quadros e as côres da paisagem.

E' extensa a bibliographia conhecida sobre os Lusiadas, não contando os commentarios que acompanham muitas das suas edições em português e outros idiomas; do poema se tem estudado, explicado e discutido, com maior ou menor desenvolvimento, a linguagem e o vocabulario, a mythologia e o maravilhoso, a geographia e a historia, a flora e a fauna e até a philosophia, a religião e a astronomia.

Da sua elaboração, modificações por que passou ante a censura ecclesiastica, incidentes e peripecias das primeiras edições não faltam tambem notas valiosas, não esquecendo as biographias do poeta. De todos esses trabalhos a respeito dos Lusiadas, occorre-me citar, entre outros: os de Humboldt, Vis

conde de Jurumenha, Morgado de Matheus, Adol pho Coelho, Ramalho Ortigão, Agostinho de Macedo, Borges de Figueiredo, Sotero dos Reis, Latino Coelho, João Adamson, Alexandre Lobo, C. C. Branco, Faria e Souza, Epiphanio Dias, Conde de Ficalho, Theophilo Braga, Guilherme Storck, Carolina Michaelis, Joaquim Nabuco, Othoniel Motta, Luciano Pereira, Sales Lencastre e Aires de Goveia.

Esta simples razão me levaria a não publicar este modesto estudo si me não animasse a confortadora esperança de que, á sombra da ligeira critica que procurei esboçar, elle poderá ter o merito de evocar para a leitura do grande epico a attenção da mocidade, o espirito das novas gerações que, ao lado de solida cultura do proprio idioma, tanto precisam de temperar a alma, ainda impressionavel e bôa, com os exemplos de altruismo sadio, amor da patria creador e heroico, resignação confortante, confiança inabalavel no futuro, coragem prudente e lealdade desusada e inquebrantavel de que Camões fartamente saturou as paginas brilhantes de sua immorredoura epopeia.

Sendo os Lusiadas, pela magnitude do assum pto, um poema tão heroico como a Iliada e a Eneida e pela opulencia de imaginação e linguagem. tão immortal como a Divina Comedia, não é infeliz mente bastante lido e meditado, como deve ser em os paizes onde se fala a lingua de Camões; no extrangeiro, apesar de numerosas traducções e commenta rios que delle se fizeram, não tem a epopeia camoneana, que é na phrase de Theophilo Braga a epopeia da civilização moderna, a notoriedade de que é merecedora, como poema de peregrinas bellezas litterarias, e por isso digno de figurar entre as obras primas das mais faustosas e applaudidas litteraturas, de certo, porque, como diz Joaquim Nabuco, quando

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